Vitrolinha – O Dorme Sujo

Capítulo Um - O Vitrolinha
Ele tinha o
cabelo claro, barba rala e traços finos. Morava na rua, dormia embaixo da
marquise de um banco, ao lado da Praça do Vitrolinha, que tinha esse nome
porque no passado, quando ali era apenas um largo cheio de mato, existia uma
oficina de funilaria cujo dono era chamado de Vitrolinha, porque tinha na
oficina, uma daquelas vitrolas antigas de plástico, as famosas Sonata, e ele
tinha um xodó por ela, não deixava ninguém mexer. Ficou com o apelido de
Vitrolinha por tantos anos que ninguém mais sabia seu nome verdadeiro. Quando
morreu e o local virou uma praça bem cuidado, puseram seu “nome” nela por que o
lugar já tinha ficado conhecido como a Praça do Vitrolinha. Tinha placa e tudo.
Como ninguém
sabia o seu nome e porque ele já fazia parte da praça, o “dorme sujo” foi
apelidado pelos meninos do entorno, de Vitrolinha. Ele nunca pedia dinheiro a
ninguém. Os moradores do entorno da praça lhe davam comida, roupa, e às vezes
alguém o deixava entrar no seu quintal para tomar um banho de mangueira, mas,
na época de frio ele ia dormir em algum abrigo, onde tomava um banho quente e
também tomava sopa.
Falava quase
nada. Agradecia sempre que lhe davam alguma coisa. Percebia-se um sotaque de
Minas Gerais, e percebia-se por suas poucas palavras que era uma pessoa culta e
deveria ter família, pois era educado ao se dirigir às pessoas. Era ordeiro. De
manhã, arrumava suas poucas tralhas, punha numa mochila grande que alguém
pusera na rua e colocava tudo em cima do galho de uma Cássia, que era a mais
velha das várias arvores existentes na praça, por isso mesmo seus galhos eram
um bom esconderijo para a mochila do Vitrolinha.
Até que um dia,
talvez por denúncia anônima, nunca se soube, os fiscais da prefeitura
acompanhados da guarda municipal, chegaram lá para levar a mochila. Alguns
moradores indignados intervieram, até desacataram os GM, que ameaçaram chamar a
PM para resolver o impasse, visto que a coisa estava ficando feia. Mas, aí
Vitrolinha falou bem calmo: “não faz mal pessoa, eu me arranjo”.
E os fiscais
levaram tudo !
Capítulo Dois
- A Jornalista
Depois que os
fiscais foram embora, os vizinhos fizeram uma coleta e lhe deram novos
cobertores, travesseiro, roupas, tênis, um colchonete, pratos, talheres, etc...
Ele recebeu tudo aquilo calado, mas agradeceu educadamente por tudo. Seo Tonico
dono de uma lanchonete, mercadinho e café localizado na praça, o mais antigo
morador de lá, deixou que Vitrolinha guardasse suas tralhas em um deposito que
ele tinha no fundo, a partir das 7hs, mas, deveria retirar até as 21 hs. Que
era o seu horário de fechar.
Esse
acontecimento chamou a atenção de uma moça, que morava em uma das ruas que saia
da praça. Seu nome era Aline e era jornalista. Se bem que seu jornal, o Diário
da Cidade era um tabloide, distribuído gratuitamente nas estações do metrô e
rodoviárias de S. Paulo. Mas ela estava fazendo faculdade de jornalismo, então
já se considerava uma jornalista. Ela fora ao mercadinho comprar algumas
coisas, bem na hora que os fiscais chegaram. Curiosa, acompanhou parte do
desenrolar da coisa e como tinha que trabalhar não chegou a ver o desfecho
disso.
Chegando na
redação, falou com Dirceu, seu chefe e disse que gostaria de fazer uma
reportagem com o mendigo chamado de Vitrolinha, pois achou o tipo interessante.
Ele lhe pareceu educado e articulado demais para um simples mendigo! Dirceu
disse que ia pensar. Depois de uns dois dias, Dirceu mandou chamar Salvador,
seu mais velho fotógrafo e seu amigo pessoal.
Falou do caso do
mendigo para ele e disse que gostaria que ele fosse com Aline, para ver se
realmente era uma boa reportagem a ser feita. Com sua experiência ele saberia.
E assim foi feito, Aline e Salvador foram entrevistar Vitrolinha. Aline combinou com Salvador dele ir na sua
casa logo de manhã, para pegarem Vitrolinha ainda na praça, por que ele sempre
saia a andar e às vezes só voltava de tarde.
Quando chegaram
na pracinha, Vitrolinha estava sentado num banco tomando o café com pão que seu
Tonico lhe dava todas as manhãs. Em troca ele deixava o depósito arrumado e
limpo. Essa foi a fórmula que seu Tonico achou para que Vitrolinha tivesse um
café da manhã com dignidade, pois estava pagando por ele, assim pensou. O que
fazia um certo sentido. Visto que ele nunca pedia nada.
Vitrolinha
ficou arredio, não queria dar entrevista nenhuma e não queria ser fotografado.
Salvador, macaco velho que era, já tinha tido experiência com mendigos antes,
entrou com um celular preso na cinta fotografando automaticamente enquanto andava
em direção a Vitrolinha. Depois veria qual foto dava para aproveitar. Sempre
dava. Aline fez inúmeras perguntas sobre seu nome, de onde era, como fora sua
vida pessoal até agora, se tinha faculdade, mas, não arrancou nada dele.
Foi então
entrevistar os vizinhos e principalmente as crianças que lhe deram bastante
informação sobre o mendigo. Com isso conseguiu fazer uma reportagem razoável e
que seu chefe gostou e mandou publicar.
Capítulo Três
- Pedro e Helena
Após a
entrevista, por causa das perguntas sobre sua vida pessoal, aquele mendigo
excêntrico relembrou tristemente de sua vida pessoal. Era de Belo Horizonte,
seu nome era Paulo Emilio, era casado com a professora Helena, e era sócio de
seu irmão Pedro em uma transportadora bem-sucedida.
Ele e o irmão
às vezes ajudavam em algum carregamento, pois foram caminhoneiros quando a
empresa era do pai e eles estavam fazendo faculdade, e sabiam que às vezes uma
ajuda era em vinda. Eram bons patrões,
que já tinham feito o mesmo trabalho dos empregados, então davam bastante valor
a eles. Eram estudados, certo, mas, não
eram orgulhosos e punham a mão na massa quando precisava.
Paulo era
economista e Pedro era advogado. Tinham herdado a transportadora do pai e
resolveram tocá-la juntos. E prosperaram bastante, aumentaram a frota de
carros, caminhões, vans e empilhadeiras. Pagavam bem os funcionários que viviam
satisfeitos. Paulo era casado com Helena há um ano e meio e estavam se
preparando para ter filhos. Pedro era mais novo e ainda solteiro. Só queria se divertir.
Um dia,
voltando de visita a um cliente do interior Paulo resolveu passar em sua casa
para trocar de roupa, pois tinha ido de terno na visita, roupa que nunca usava
no trabalho. Ficou surpreso ao ver o carro do irmão parado na frente de sua
casa no meio da tarde. Entrou devagar, desconfiado e flagrou o irmão abraçado a
Helena, que passava carinhosamente as mãos em seu rosto e falava palavras de
carinho amorosamente perto de seu ouvido.
Paulo ficou chocado ao ver aquela cena, não viu o rosto do irmão que
estava virado para o outro lado. Emitiu um som rouco, como um animal ferido,
deu meia volta e saiu, não sem antes ver que Helena olhou para ele surpresa, se
desprendeu do abraço de Pedro e veio em direção a Paulo, falando alguma coisa
que ele não conseguia entender tão transtornado estava.
Saiu correndo
pela rua, nem entrou no seu carro. Helena também transtornada e seguida por
Pedro correu atrás dele mas ele havia entrado em um taxi e ela o perdeu de
vista. Paulo não voltou para casa e nem
para a empresa, desapareceu de tal forma, que mesmo um detetive particular
contratado por Pedro não achou nenhuma pista dele. Paulo simplesmente
desapareceu!
Capítulo Quatro
- Clara
Helena e Pedro
ficaram desolados, pois, queriam explicar a Paulo o que se passou na casa
dele. Paulo simplesmente saiu, a pé, sem
rumo e andou, por vários dias e noites, quase sem parar. Não olhou para trás, ficou assustado com as
coisas que pensou fazer, mas amava demais tanto Helena como seu irmão e não
podia fazer o que seu cérebro queria.
Andou até
acabar seu dinheiro, suas roupas se transformarem em trapos imundos, os cabelos
e a barba crescerem e ele se transformar num dorme sujo. Depois de muitos dias
andando e muitas noites dormindo ao relento, embaixo de marquises, vivendo de
roupas doadas, comendo o que lhe davam, às vezes pegava uma descarga de
caminhão para fazer e ganhava uns trocados que usava para comer.
Assim acabou
parando na Praça do Vitrolinha, que era um lugar sossegado, com muitos
moradores e ele acabou ficando por lá, pois não mexia com ninguém e os
moradores o deixaram ficar como já vimos.
Helena passou a
ajudar Pedro na transportadora. Não tinham notícias de Paulo a quase um ano, mas
não desistiam de encontrá-lo. Contrataram detetives particulares em s. Paulo e
no Rio de Janeiro.
Clara era a
melhor amiga de Helena. Amiga de colégio, fora madrinha de seu casamento,
estava triste pelo que a amiga estava passando. Tinha uma loja de roupas e
estava em S. Paulo fazendo compras. Após fazer sua encomenda, que lhe seria
entregue pelo fornecedor, foi para o hotel pois já era tarde para voltar para
Belo Horizonte.
Na manhã
seguinte antes de viajar, ela resolveu que iria comprar alguma coisa nova para
dar de presente para Helena no intuito de alegrá-la um pouco. Afinal toda
mulher gosta de roupa nova! Após fazer a
compra, pegou o metrô para encontrar seu marido que a esperava em um shopping
próximo à saída para a rodovia que os levariam de volta a Belo Horizonte. Cheia de sacolas como estava, teve
dificuldades para comprar o bilhete e passar pela catraca, com um pouco de
ajuda de um policial, conseguiu fazer tudo.
Nisso uma jovem
a abordou oferecendo um jornal. Ela recusou, pois estava cheia de sacolas e não
poderia pegar sua carteira para pagar. A jovem disse que era gratuito e enfiou
um exemplar em uma das sacolas.
Encontrou o
marido, este levou as sacolas no carro, comeram alguma coisa e pegaram a
estrada, pensando em chegar ainda de dia em Belo Horizonte.
Chegaram no
final da tarde e após deixar o marido na loja, resolveu ir na transportadora
levar o presente que comprara para Helena. Como sabia em qual sacola estava,
pegou-a e foi.
Abriu a sacola
e tirou as coisas de dentro. Viu o jornal que lhe deram no metro e o jogou em
cima de uma mesa que estava cheia de papel e foi dando as peças de roupas a
para a amiga. Helena se comoveu com a
gentileza de Clara. Quis pagá-la, mas a amiga falou que era presente.
Capítulo Cinco
– O Jornal
.
Um dia ou dois
depois da visita de Clara, Helena, estava limpando a mesa onde Clara colocou o
jornal. Estava prestes a jogar o jornalzinho no lixo, quando deparou com a foto
de um mendigo que lhe pareceu conhecido. Olhou com mais atenção e reconheceu
seu marido Paulo. Saiu pelo pátio gritando por Pedro, quase foi atropelada por
um dos caminhões que manobravam. Com os gritos dos funcionários, o motorista
freou em tempo e Pedro que estava dentro do carro para ir visitar clientes,
desceu correndo e foi ver o que tinha deixado Helena tão desvairada e
desatenta.
Quando viu o
jornal e leu a reportagem que contava como o Vitrolinha tinha aparecido na
praça e, que isso aconteceu uns 30 dias após ele sair de Belo Horizonte, da
mesma forma que Helena, não teve dúvidas que era seu irmão. Resolveram
procura-lo.
Eles tinham um
gerente comercial, Tiago, muito competente, e o deixaram tomando conta da
transportadora e viajaram para S. Paulo. Saíram logo de madrugada e chegaram em
S. Paulo perto da hora do almoço. Encontraram logo, pelo GPS, a rota da Praça
do Vitrolinha. Pararam em um bar, que era nada menos que o bar do Seu Tonico.
Levavam consigo
o jornal e perguntaram logo pelo homem da foto. Seu Tonico, desconfiado, quis
saber quem eram eles e o que queriam com aquele homem, pensando que seriam do
Serviço Social e que iriam criar problemas pro Vitrolinha.
Helena então,
já chorando emocionada, percebeu que esse homem era amigo de Paulo e se
revelou: contou que era a esposa dele, que seu nome era Paulo e que ele tinha
saído de casa por ter entendido uma situação erroneamente.
Seu Tonico, que
já desconfiava de alguma coisa assim, pelo jeito do Vitrolinha, mandou uma das
garçonetes chamar o rapaz, que estava limpando o depósito.
Paulo, veio sem
desconfiar de nada, e teve um tremendo choque ao deparar com Helena e seu
irmão.
Quis dar meia
volta, mas Pedro foi mais rápido e se agarrou a ele, logo seguido por Helena e
pediram para ele ficar calmo e que deixasse que eles lhe explicassem tudo.
Paulo aquiesceu. Achou seu irmão bem mais magro e Helena abatida. Seu Tonico
levou-os a um reservado e eles conversaram.
Pedro contou
que estava com câncer, um câncer raro e ainda sem tratamento, tinha pouco menos
de um ano de vida e não queria morrer sem se explicar com Paulo e fazê-lo
voltar ara Helena.
Naquele dia que
Paulo os flagrou abraçados, Pedro tinha tido a notícia da doença e foi falar
com Helena por que não sabia como contar para Paulo, visto que eram muito
unidos e Paulo iria ficar arrasado com a notícia. Naquele instante, em que Helena
consolava Pedro e comovida passou a mão em seu rosto, Paulo entrou e vendo essa
cena pensou o pior, pensou que eles estavam tendo um caso!
Paulo chorou
muito ao saber da doença do irmão. Pediu perdão aos dois por ter duvidado deles
e principalmente de Helena. Eles já o tinham perdoado e só queriam sua volta
para casa. O que aconteceu.
Uns meses
depois, com Pedro já morto e Helena grávida, Paulo fez questão de ir a S. Paulo
e ir na praça, de porta em porta agradecer aos moradores a acolhida que teve
nos vários meses que lá morou. Procurou Aline e agradeceu muito a ela, pois foi
graças a sua persistência na reportagem é que pode ter sua vida de volta.
Decidiram, ele e Helena se o bebê fosse menino seria Pedro e se fosse menina
seria Aline.
Fim
[João Libero]
Uma história amor e fraternidade.
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