BERNARDO E SERENA – UMA HISTORIA DE AMOR
Capítulo um.
Bernardo, O Sem Dono.
Seu nome era Bernardo. Sobrenome? Só ele sabia, mais ninguém. Nascido escravo liberto, “beneficiado” pela Lei do Ventre Livre, da Princesa Isabel, que dizia que todo filho de escravo nascido após aquela data seria livre, ele era conhecido na fazenda em que nasceu, como o “negrinho sem dono”. Como era protegido por lei, não trabalhava, mas também não conseguia emprego como
qualquer outro pois era negro, e negro que não era escravo não era nada, não existia. Quando se tornou adolescente, já com dezesseis ou dezessete anos, seus pais morreram e ele se vendo só e tratado como um nada, saiu pelo mundo. Fez de tudo um pouco. Dormia ao relento, comia o que caçava e às vezes quando conseguia algum trabalho [raramente], comprava alguma coisa no armazém para comer. Cresceu, muito, tornou-se um homem forte pela vida ao ar livre. Tinha quase 2 metros de altura, musculoso e seus traços faciais eram duros, fisionomia amarga. Era bravo e sabia se defender.
Um belo dia, chegou a uma fazenda onde estavam amansando cavalos xucros. Parou ao lado do curral e ficou observando os trabalhos. De repente, um dos cavalos, o mais bravo, derrubou o domador e escoiceou a cerca do curral. Duas crianças que estavam assistindo sentadas no topo da travessa da cerca, caíram dentro do curral. O cavalo, percebendo o movimento foi em direção a elas, pinoteando, escoiceando e com certeza as alcançaria. O dono da fazenda, pai dessas crianças, ficou desesperado pois não daria tempo de chegar a elas e não estava armado, senão atiraria no cavalo.
De repente, surgindo do nada, apareceu aquele negro gigantesco, que pulou para dentro do curral falando calmamente uma língua estranha e andando firme em direção ao cavalo enlouquecido.
O animal parou, levantou as orelhas, relinchou e foi trotando em direção a Bernardo, que não se abalou e continuou andando calmamente. Dois vaqueiros pularam para dentro do curral e resgataram as crianças.
O cavalo chegou perto de Bernardo, empinou como se fosse pisoteá-lo, mas, ele não se mexeu e continuou aquela ladainha no mesmo tom de voz como se estivesse fazendo uma reza.
Aqueles homens curtidos e valentes nunca tinham visto tamanha frieza. Ninguém condenaria se aquele gigante de ébano saísse correndo para fora do curral, pois o cavalo era assustador, alto, forte, espumando, com os olhos esgazeados e erguendo as patas para agredir.
Bernardo ergueu as mãos enormes, acariciou o peito do cavalo que imediatamente abaixou as patas e veio dócil encostar sua cabeça nas mãos do homem. Bernardo encostou na cabeça do cavalo e continuou a falar mansamente com o animal que aos poucos foi se acalmando. Sempre falando naquela língua estranha, ele deixou todos que estavam assistindo a cena, pasmos, pois em seguida montou o cavalo que nem se mexeu. Deu uma volta com ele sem deixar de falar ou cantar. Parecia que estava cantando para o cavalo. Ou encantando o cavalo.
Naquele dia a fazenda ganhou mais um vaqueiro. Bernardo ganhou uma cama, roupa, botas, um lugar na mesa do refeitório e o respeito dos vaqueiros e do patrão.
Capítulo Dois

Bernardo, O Boiadeiro

Já fazia um ano que Bernardo estava naquela fazenda. Tinha conquistado a confiança do seu Domingos, o dono, e dos vaqueiros todos. Era de absoluta confiança, era quem trabalhava mais, até mais tarde; era incansável, ajudava todo mundo, nunca reclamava.
Tinha um defeito: nos dias de folga ia para a vila e bebia muito, arrumava confusão fácil e no dia seguinte seu Domingos ia tirá-lo da cadeia.  Ele ia trabalhar como se não tivesse bebido tanto no dia anterior!
Um dia seu Domingos entrou no dormitório dos vaqueiros, e falou para Bernardo se aprontar que ele iria chefiar a equipe que iria a Goiás buscar uma boiada. Ficou permanentemente. Iam e voltavam sem problemas maiores. O único problema era depois da chegada da boiada.
Bernardo e os vaqueiros faziam a entrega dos bois no frigorífico e saiam pelos bares bebendo e arrumando confusão. Chegava a entrar a cavalo nos bares. Andava armado com revolver e faca, além do chicote, como a maioria dos vaqueiros.
Seu Domingos tolerava tudo isso, porque ele trazia a boiada inteira, raramente perdia uma rês na viagem e os homens o respeitavam. E ele só bebia depois de entregar os bois. Ninguém era assim. Isso já fazia 3 anos!
Mas, àquela última viagem foi diferente! Chegaram, entregaram os bois e foram aos bares para beber, menos Bernardo! Ele voltou para a fazenda e foi para o alojamento. Quieto, com olhar perdido, todos estranharam, ele nunca foi assim! O que será que aconteceu? Só ele sabia.
Deitado no catre, Bernardo cismava! Estava lembrando da viagem de volta, quando parou num riacho para encher os cantis e viu aquela índia, muito bonita, lavando roupa. Ela olhava para ele com o canto dos olhos, ele percebeu!
Mas, pensou, quem era ele, um negro feio, grandalhão, assustador, desengonçado que mal sabia falar, para pensar naquela moça tão bonita que parecia um anjo?
Mas, podia sonhar não podia? Sua mãe sempre falava que eles podiam ser escravos do homem branco, serem castigados, chicoteados até, mas o que o dono não podia, era mandar nos seus sonhos! E ele sonhava, com a pequena indiazinha que lavava no rio!
Bernardo mudou, ficou mais calado ainda.

Capítulo Três

Serena, Filha da Lua

Seu nome era Serena. Era índia. Nasceu numa linda noite de luar. Era uma criança dócil, calma e lhe deram o nome de Serena por isso. Cresceu na aldeia de seu povo, no interior de Minas Gerais. Preocupações? Não as tinha. Cresceu uma moça bonita, longos cabelos negros, pele bronzeada pela vida ao ar livre, sadia, delicada, mas forte.
Na sua tribo, não existia o costume de prometer casamento em criança como era costume em várias tribos na época.
Ela então cresceu, sonhando que um dia apareceria um cavaleiro encantado que a levaria para cavalgar para um lugar muito bonito e ela seria muito feliz. Cuidaria dele, cozinharia aqueles quitutes que sua avó e sua mãe lhe ensinaram.
Teriam filhos, uma casinha de verdade, não uma de sapé como a de seus pais, e as demais da aldeia, uma de madeira, com chão de madeira, uma janela de abrir, uma porta, as duas com uma tramela pra fechar por dentro, uma cama, uma mesa, cadeira, tudo igual a casa da sinhá Marina.
Sinhá Marina era a dona da venda onde seus pais compravam as coisas que não plantavam. Quando foi entregar mandioca na casa da sinhá, ela, da porta, viu tudo isso e ficou maravilhada.
Ela trabalhava duro. Capinava na roça, plantava, colhia, moía o milho pra fazer fubá, ralava mandioca pra fazer farinha, cuidava da carne que era caçada pelos homens. Ajudava também em parto, cuidar das crianças pequenas, enfim ajudava no dia a dia da aldeia como todas as mulheres e moças.
Quando já estava com dezesseis para dezessete anos, por ser muito bonita, começou a interessar aos jovens guerreiros da tribo, mas não se interessou por nenhum, pois esperava aparecer seu cavaleiro encantado.
Havia um jovem, Apuana, Aquele Que Corre, que era apaixonado por ela. Como era muito forte, os outros jovens, sabendo de sua paixão não se aproximavam de Serena, e ela ignorando isso tudo vivia feliz, sem ser assediada. E Apuana, apesar de ser destemido, era tímido e não tinha coragem de se declarar a Serena. E assim foi correndo o tempo, com Apuana platonicamente amando Serena e está sonhando com seu cavaleiro encantado.
Um dia, estava Serena lavando roupa no riacho, quando viu aquele homem enorme se aproximando, montado em um cavalo baio, também enorme. Ele olhou para ela que desviou o olhar e apeou do cavalo com vários cantis na mão. Abaixou-se e começou a enchê-los de agua.
Ela olhava com o canto dos olhos. Nunca tinha visto um homem tão grande e tão escuro, mais escuro do que qualquer um da aldeia.  Bernardo não era exatamente bonito, principalmente por que era carrancudo, mas, ao olhar com admiração para Serena, seu semblante se desanuviou e pareceu a esta, que ele era amável, bom e até era bonito. Ela percebeu que ele, ao ir embora, deixou um pacotinho junto as roupas que ela estava lavando. Montou seu cavalo e foi embora sem falar nada.
Ao longe, parou e deu uma olhada para traz, a tempo de vê-la pegar o pacotinho que deixou na pedra. Sorriu e tocou o cavalo. Serena abriu o pacotinho e deparou com um tablete de rapadura, que os vaqueiros usavam para aguentar a dura jornada. Rapadura era a vitamina desses homens duros, mais a carne seca e feijão. Ficou maravilhada, pois adorava doce e rapadura era raro de se encontrar por ali. Pensou que talvez tivesse encontrado seu cavaleiro encantado, e ficou a sonhar com ele...

Capítulo Quatro
              
Apuana, Aquele Que Corre.

O tempo passou, Serena tornou-se uma bela mulher e Bernardo não via a hora de sair para buscar gado em Goiás e passar na aldeia, na ida e na volta.  Já estavam bem ligados, conversavam bastante, faziam planos.
Bernardo estava mais sóbrio, já não bebia. Estava guardando dinheiro para levar Serena com ele e lhe dar a casa de madeira que ela tanto sonhava.
Serena por sua vez, estava se preparando para ser uma boa mulher, aprendeu a cozinhar, sinhá Marina estava lhe ensinado a ser dona de casa, a cuidar do seu homem, costurar, arrumar a casa...
Apuana, que se tornara um belo homem, um pouco mais baixo, mas também forte como Bernardo, vendo o assédio deste sobre Serena, criou coragem e se declarou a ela.  Serena que via em Apuana apenas um irmão mais velho, se surpreendeu e disse que ela estava apaixonada pelo cavaleiro negro e que iria embora com ele.
Apuana, magoado saiu da aldeia, entrou na venda de sinhá Marina, comprou uma garrafa de aguardente e saiu para fora, sentou-se sob uma arvore e pôs-se a beber.  Como não estava acostumado, logo ficou bêbado e passou a ser alvo de brincadeiras de alguns vaqueiros da região que estavam por ali. Num determinado momento irritou-se e partiu para a briga. Como era muito forte, começou batendo, mas de repente viu-se cercado por vários homens que vieram em socorro dos companheiros e ficou em desvantagem e começou a levar uma surra.
Nesse momento, Bernardo, que estava indo comprar doces para levar pra Serena, chegou na frente da venda e viu aquela cena, um grupo de vaqueiros espancando um índio. Não achou aquilo certo e entrou na briga. Não é preciso dizer que os vaqueiros, vendo aquele negro gigantesco juntar forças com o índio, também alto e forte, sentindo que o jogo estava virando contra eles, saíram correndo.
Apuana, de repente se viu salvo justamente pelo homem que lhe roubava o amor de sua vida, levantou-se, agora além de magoado, estava humilhado. Seus ferimentos nem doíam tanto como seu coração. Olhou para Bernardo, humilhado, balançou a cabeça e se retirou cambaleando. Bernardo que nunca percebeu a paixão de Apuana por Serena, porque só tinha olhos para ela quando estava na aldeia, também não entendeu a humilhação deste. Deu de ombros, pensou “índio esquisito” e entrou na venda. Comprou doces e foi para a aldeia. Lá contou para Serena o acontecido com Apuana, que ele sabia que ela gostava como se este fosse seu irmão mais velho.
Ainda comentou que estranhou ter visto Apuana bêbado.
Serena ficou aflita, porque sabia o motivo da bebedeira inusitada. Ficou em conflito, tinha dó de Apuana, mas nada podia fazer quanto aos sentimentos dele, pois já amava Bernardo e iria embora com ele. Ela só não sabia o que seria de Apuana e ficou desolada com a situação. E ficou pior, quando uns dias depois, soube que Apuana tinha ido embora e sem se despedir dela.

Capítulo Cinco - Final
              
Ojibe, O Decaído

Passaram-se cinco anos, Bernardo e Serena se uniram em uma cerimônia indígena, na aldeia, e foram morar na fazenda do seu Domingos. Apuana continuava desaparecido.
Na fazenda, a esposa de seu Domingos, Dona Julia, obrigou-os a casar nos moldes da civilização, com padre e juiz de paz! Bernardo fez a casa de madeira como Serena queria, em uma área cedida por seu Domingos pelo tempo que ele fosse seu empregado.
Viviam felizes com o pouco que tinham, mas achavam muito, pois tinham um ao outro. A única sombra a essa felicidade eram as viagens de Bernardo, que passava dias viajando com o gado. Mas, quando chegava, era só felicidade. Serena, para ocupar o tempo e melhorar a condição de vida, foi trabalhar na casa de dona Julia, fazendo de tudo um pouco e como paga recebia, além de um pequeno salário, roupas e utensílios para a casa.
Havia um índio na vila, de outra nação que não a de Serena, que não se conformava que uma índia tão bonita estivesse casada com um não índio, além de tudo, negro. Seu nome era Ojibe. Às vezes quando Serena ia na venda comprar alguma coisa, ao passar perto desse índio, ele a insultava e ameaçava na língua de seu povo, que era a igual a falada por Serena.  Lhe dizia baixinho o que iria fazer com ela, andando ao seu lado.
Quem os visse achava eu eram amigos conversando, pois os dois eram índios e para os brancos índios são todos iguais e da mesma raça! Mas, havia alguém, na sombra vendo isso e entendendo o que falavam.
Com o tempo Bernardo passou a capataz da fazenda, deixando de viajar, o que alegrou muito Serena. Na noite em que soube da promoção, Bernardo chegou com um bolo que comprou na venda, para fazer uma surpresa para Serena e comemorar que ele não iria passar mais muitos dias fora de casa. Mas, o surpreendido foi ele, quando ela lhe contou que estava grávida já há 4 meses.
Foi uma alegria indescritível, para esse homem maltratado desde seu nascimento, saber que ia ser pai. Combinou com seu Domingos de pegar um dia de folga para ir até a cidade comprar um berço e roupinha para o bebê. Dona Julia, achando engraçado lhe disse que era muito cedo para isso, que tinha tempo, mas, qual, ele foi assim mesmo. Seu Domingos disse que então iriam de carro pois dona Julia iria aproveitar para fazer compras. Serena não foi pois estava com enjoo.
No começo da tarde, num horário que os vaqueiros estavam vadiando pela fazenda, dormindo, ou cuidando dos cavalos, Ojibe, sorrateiramente foi até a casa de Serena. Esta estava pendurando roupa no varal e cantando alegremente, feliz da vida, toda hora acariciando a barriga e não percebeu a entrada do índio na casa.
Após pendurar roupa entrou para descansar um pouco e se viu agarrada por Ojibe que disse que hoje ela pagaria por ser a amante do negro. Ela gritou muito, mas a cabana deles ela longe dos alojamentos e das cocheiras e os vaqueiros não podiam ouvi-la. Horrorizada, viu-se amarrada na cama e Ojibe tirar um facão da cinta e dizer que ia p tirar a cria do negro da barriga dela e depois ia deixa-la com a barriga aberta pro negro ver quando chegasse! Ela gritava como louca e ele foi se aproximando.
Nesse momento, como um demônio vingador, um vulto entrou pela porta e se atirou sobre Ojibe, jogando-o longe dela. Era Apuana, que de um golpe de faca soltou suas mãos amarradas e enfrentou Ojibe. Serena saiu correndo chamando os vaqueiros para acudir. Quando eles entraram na cabana armados, encontraram Apuana todo ensanguentado, muito ferido e Ojibe morto com o próprio facão, que Apuana tinha tirado dele. Levaram Apuana para o alojamento e trataram dele como puderam, enquanto alguém foi buscar o médico da vila. Serena correu para perto da sua cabana e pegou ervas do ervanário que plantou e voltou levando um punhado delas e aplicou em Apuana. Quando o médico chegou, nada pode fazer, Apuana agonizava e falava com dificuldade para Serena que havia ficado esses cinco anos morando no mato para ficar próximo dela e velar por ela e graças a isso pode salva-la de Ojibe. E depois mansamente morreu nos braços da mulher que amava.
Quando Bernardo voltou com seu Domingos ficou apreensivo, com medo que Serena perdesse o bebê, mas, ela era forte e superou bem o acontecido. Quando uns meses depois o bebê nasceu, Bernardo fez questão de lhe dar o nome de Apuana.
Com o tempo tiveram mais dois filhos, Bernardo e Domingos. E ficaram morando na mesma cabana até fim da vida, mesmo com os filhos formados e morando na cidade próxima. Morreram com mais de oitenta anos. Um dia, um dos filhos de seu Domingos estranhando não os ter visto o dia todo, pois sempre sentavam na frente da cabana para tomar sol e contar histórias para as crianças da fazenda, entrou na cabana e encontrou-os mortos abraçados com um sorriso no rosto, os dois!

[João Libero]


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